quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Piano (Memórias que Magoavam em fase de Terapia)


Pernas cruzadas à chinês em cima da cama, a Camila (sim é estúpido, a minha guitarra tem um nome) nas mãos, tu ao meu lado.
Perguntas-me:
"Porque é que nunca mais tocaste piano?"
Automaticamente a minha expressão mudou, continuei a tocar, agora mais baixo, mas a minha voz calou-se para pensar como faço sempre com perguntas desse género, respondi:
"O piano magoa-me."
"Porquê? Tocas tão bem..."

Silêncio. Mais uma vez penso. Bem sei o porquê, só não sei como responder.
"Porque me lembro dos "concursos", das audições, da tentativa de entrar para o conservatório. É como o desenho e a filosofia. Perder o talento para aquilo que melhor sabia fazer custa."

Falei baixo. Não percebeste que disse e como não te respondi quando pediste para repetir, continuaste:
"Porque é que desistes?"
E outra vez silêncio

"As pessoas desistiram de mim primeiro. Os meus pais em casa, na academia, já não era eu que fechava as audições. A própria Gisela estava farta de mim. Eu estagnei simplesmente parei de aprender."
"Tu tocas tão bem "Túlipa"!"
" "Ele", sabes muito bem que este ano não dei uma para caixa."
"Porque não quiseste! Se fosses persistente não era assim, não podes desistir assim só porque os outros parecem não acreditar!"

Irrito-me. De que está ele a falar? Que sabe ele disto?
"Eu não desisti, quem disse que desisti? Só parei um bocado é normal, quando algo te magoa é difícil continuar, principalmente quando já ninguém acredita, mas eu não desisti, tu não sabes, não percebes!"

Largaste-me, já não me abraçavas. Deitei-me na cama, mas o silêncio era demasiado. Pensei demasiado, consecutivamente. Nos bons momentos em que me senti boa no que fazia... E em como ao decorrer do tempo fui decrescendo.

Levantei-me devagar com pés de veludo, qualquer barulho que perturbasse o silêncio perturbador que nos envolvia parecia-me letal. Passei o corredor, devagar procurando não estalar o chão de madeira. Parei à porta da sala. O meu piano. Avancei, acariciei o banco que rangeu como sempre, a convidar-me para sentar. Levantei a tampa: Braco, preto, branco, preto, branco, branco, preto, branco, preto, branco, preto, braco, e assim sucessivamente. Acariciei as teclas, toquei pianíssimo num Mi. Não concegui tocar mais, não com som. Peguei nas partituras, velhas, sem uso à tanto tempo... na realidade nunca lhes dei uso, porque sempre aprendi de ouvido.
Encostei a cabeça e fiquei assim, acariciando as teclas, entregando-me a pensamentos bons e maus, dando de beber ao piano com as minhas lágrimas.
E foi assim que deste comigo, no escuro encostada ao piano, a cara lavada em lágrimas.
Aproximaste-te devagar; ajoelhaste-te e agarraste a minha cintura.
"Desculpa. Desculpa, sou uma besta..."
Limpáste-me as lágrimas, o nariz. Pediste-me para tocar. Sentáste-te no banco do piano comigo ao teu colo e assim ficamos. O tempo necessário, para eu ganhar coragem e tocar. Toquei baixinho, notas sem sentido, uma escala aqui um Sol fora de sítio, mas quando parava pedias-me para continuar. E eu continuava. Sempre até teres de ir e me fazeres prometer que acabava a música que contigo acabei por descobrir.
Ficas-te feliz quando fechei a tampa e beijei o meu piano. Chamaste-lhe reconciliação.

"Fazes-me tão bem"
Disse-te. Porque o sentimento depois da nossa tarde foi de serenidade, tão o oposto do que sentí inicialmente.
És tão mais que aquilo que julgas.

7 comentários:

Mary disse...

Gostei mesmo do que li! Nunca se deve desitir de algo de que se gosta, ainda para mais se tens talento nisso .. Mesmo que as pessoas nao te apoem tenta .. no final veras que tanto esforço valeu a pena!! =)

eudesaltosaltos disse...

este texto é de uma vulnerabilidade assustadora. digo-te. sinto-o. (tocaste me vez de "tocás-te", Automaticamente em vez de "Automáticamente", continuaste em vez de "continuas-te", momentos em vez de "moemtnos", Aproximaste-te... ajoelhaste-te e agarraste em vez de "Aproximáste-te devagar; ajoelháste-te e agarráste a minha cintura."... há mais. tem atenção. d resto, nd a apontar. bj)

Anónimo disse...

Pelos vistos o David seguiu o meu conselho :)

Detesto saber que desistes tão facilmente daquilo q mais gostas d fazer !

Quando tive contigo em Lisboa, a u'nica maneira d te fazer tocar era dizer q ja tava cansada e que agora eras tu ou '' ensina-me uma mu'sica '' ..

Davas erros, é verdade, não vou mentir. Mas erros inocentes, não de ''burrice'', mas sim erros d medo. de Tristeza. Não te via com grande entusiasmo a tocar piano. Quase choraste quando me contaste a história q agora '' o tomás é q é o menino da música e eu já n sirvo ''. Mas não é verdade. Luta por aqilo q qeres. Não desistas a prmeira so' pq os outros não veem no q realmente és boa. MOSTRA QUE ÉS CAPAZ.

Parece q o momento de reconciliação som o teu pianoa tinha de ser com uma pessoa mesmo especial e num momento especial. E fico feliz por isso, porque também e adoro ouvir tocar.

Adoro-te

Anónimo disse...

Ta mesmo bonito! vamos passar até por cima do piano!:D. vais.me ensinar a tocar a "nossa" musicaXD. vai ficar tudo bem amor:). vais ver e vais voltar a amar o piano como usavas. vais tocar orgulhosamente para mim, mas nao muito tempo se nao adormeço ao ouvir a musica dos anjos.Amo-te!

Anónimo disse...

autxx... tava a ler... parecia um bcd dos meus sentimentos no inicio!!!!! =0
"E em como ao decorrer do tempo fui decrescendo."..... isso mesmo... :S

Anónimo disse...

agora mais a brincar:

"sou uma besta..." LOOOOOOOL
mais uma vez tenho de concordar xD LOOL
só verdades neste texto mariana ;P

carteiro disse...

não sei bem se estas palavras vão ser lidas mas numa breve passagem para ficar a conhecer este teu espaço, parei aqui. estas tuas palavras tocaram-me e fazem-me todo o sentido. E estão lindamente escritas, com o ritmo que quase faz dançar as lágrimas nas quais o coração se envolve...