segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Sede


"Uma a uma, as pétalas vão caindo."

"Uma a uma, tu as apanhas e colocas de volta, onde pertencem."

"Naquele ciclo inesgotável onde reside apenas a minha mórbida silhueta e a tua neurótica paciência. Preso à minha decadência, ocupando a mente com aquele trabalho interminável de manter de pé a memória que reside solitária na minha lápide. Dás-lhe a beber a saliva, a infinita atenção das palavras, o folgo ofegante da tua existência."

Mas elas teimam em cair, enquanto tu teimas em ampará-las, adivinhando-as mesmo antes de tocarem a pedra fria e sem vida que agora marca a minha passagem neste mundo. Chegas à milésima tentativa de me manteres na mente, mas à medida que apercebes que "Nunca é Tarde de Mais" é uma singela mentira para apaziguar os homens, o punhal crava mais fundo, dentro da alma.

"Senti-te abrir-te, aos poucos. Até que já não abria mais."
Também eu te sinto agora. Enquanto a vida cai, abrindo caminho à loucura.

Estão as pétalas machucadas do sempre erguer artificial, já te esta cravado. E o sangue que cai, sem dares conta, na minha pele agora fria de pedra. É transparente, cristalino, salgado. Da cor do evanescer.

Mas agora, algo muda. Sem dares conta, as memórias cessam de cair. Mas mantens ainda as mãos em concha, prontas a queda da mais pequena peça de mim. Apenas se enchem de sangue, do mesmo que a pedra agora quente absorvera.

Sem dares conta, que a memória persiste baixinho, escondida nos recantos daquela flor que amavas e agora se ergue. Mas a alma vazia, esgotada por salvar, cuidar, já não pode ver, já não pode recordar, toda a atenção contida no acto de espera e recolha da queda habitual. Para que viva.


Sem dar conta que esta não morre.



"Talvez não lhe fosse suficiente"

Quê da memória que não pode ser recordada e da recordação sem memória?

21 comentários:

Anónimo disse...

Este texto está simplesmente sublime!

Anónimo disse...

Na perfeiçao das tuas palavras nos teus mais profundos sentidos, na mais simples frase, no mais forte acontecimento, vejo-te sempre, aí te guardo na minha memoria com tanta recordaçao. Amparo-te de mao em concha, só uma para que a outra te possa segurar, nao basta amparar quando cais, preciso de proteger-te da queda. sinto que es tao forte, apenas tenho tanto medo, sinto que nao precisa de um apoio que te segure, uma mao que te ampare, ams, quando realmente amamos alguem tememos e prevenimos o pior,previno-me da dor que seria ver-te cair. Agora sinto que te abraço, sem mao em concha com total confiança sinto que ha tanto merecias este abraço, sinto que ha tanto que te devia ter abraçado, quero-te beijar mas o abraço e tao forte, o amor esta tao agarrado. Sinto que nao quero mais sair daqui.

Anónimo disse...

Obrigada pelas tuas palavras. Em resposta á tua pergunta, essa mesma pessoa fez-me as 3 piores coisas que um homem pode fazer a uma mulher, por isso o meu lugar é longe dele...

Em relação ao teu post, está fantástico. "E o sangue que cai, sem dares conta, na minha pele agora fria de pedra. É transparente, cristalino, salgado. Da cor do evanescer." Adorei.

Um beijinho.

eudesaltosaltos disse...

Ola. tnh adorado ler-te. tens escrito com uma suavidade perturbante. deixo-te um Presente no meu cantinho. espero q aceites. bj

FPJ disse...

Mais uma excelente pétala desta túlipa, deixada cair nesta pedra, não para que murche e morra, mas para que possa reviver e reflorir nas nossas memórias e no nosso imaginário.

Obrigado por mais esta pétala!

PS: Continuo à espera de uma resposta à pergunta que deixei na "fome de tempo"... ;-)

Oliver Pickwick disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Oliver Pickwick disse...

Bravo, querida Túlipa! Um poema que parece extraído de tomos góticos ancestrais. Escrito de modo sombriamente belo, em linguagem primorosa.
Beijos!

Kinky disse...

Very Deep Feelings....
I wish I could express myself this way...or maybe I'm just lazy.

um bejinho nas petalas derramadas...do kinky

Pensamentos Ocultos disse...

"Uma a uma, as pétalas vão caindo."
"Uma a uma, tu as apanhas e colocas de volta, onde pertencem."

Um óptimo texto.

Rui Caetano disse...

Um texto lindíssimo, cheio de sentimento profundo, repleto de metáforas bonitas, adorei. A imagem é também maravilhosa.

Ana disse...

Oh my God.. q perfeição de texto!
=0
N sou capaz de mais... Ainda estou enebriada com as tuas palavras..

Anónimo disse...

A memória não se desvanece, o desalento fá-la reviver, a vontade da preservação exaurindo energias numa contradição desesperante que representa o machucar daquilo que se quer viçoso... As pétalas, quais frágeis asas de borboleta, não podem ser presas... Precisam de outros amparos. Não de um agarrar aflito, que arruína mais que resguarda...
Difícil mas prodigioso...!
Desejo-te uma magnífica noite!

Um beijo... :-)

OLHAR VAGABUNDO disse...

uauuuu...texto de um belo melancolico...adorei...adorei de novo a pintura...
beijo vagabundo

Mary disse...

Como sempre brilhante =)

Anónimo disse...

sobre a areia movedica:
o texto eh muito bonito, mas a analogia esta incorreta

um corpo mergulhado em areia movedica afunda apenas se ficar se mexendo. se permanecer parada nao afundaria. isso acontece devido `a densidade. um corpo boia pouco em agua doce, bastante em agua salgada, e mais ainda em areia movedica.

lampâda mervelha disse...

Esconde-se o amargor atrás da língua, esperando que o vinho nos diga mais vezes... que estamos sozinhos de facto.

Assim renascemos, por tantas vezes com esta secura na boca...

Haja mais bens por sentir...


Beijo

Rute disse...

Cada petala que cai, vai sendo recolhida pelas mãos de alguém que as ama. E a pouco e pouco essas mãos juntam todas as petalas e formam uma fova flor. Que dura para sempre.

Borboleta Endiabrada disse...

Tens um premio no meu cantinho, muito bem merecido por sinal!!

Beijinhos endiabrados

Anónimo disse...

Amiga, tenho um presente para ti... Espero que o aceites :-)

Desejo-te uma magnífica noite!

Um beijo... :-)

Finding Essex disse...

Eu venho ler tudo isto ai venho prometo! E com prazer!

Mas agora impõe-se:

http://catacumbas.blogs.sapo.pt/

Anónimo disse...

Olá Tulipa, estreio em teu blog a absorver pétalas icognoscíveis, quem caem com uma chuva de dore e dea amor a reclamar o ontem.,..
Adorei.
Tudo de bom.
João Costa Filho
Espelhodesombras